terça-feira, 18 de março de 2008

Rifa-se um coração (quase novo).(Clarice Lispectro)


Rifa-se um coração quase novo

Um coração idealista.Um coração como poucos.Um coração à moda antiga.Um coração moleque que insiste em pregar peças no seu usuário.Rifa-se um coração que na realidadeestá um pouco usado, meio calejado, muito machucadoe que teima em alimentar sonhos, e cultivar ilusões.Um pouco inconseqüenteque nunca desiste de acreditar nas pessoas.Um leviano e precipitado,coração que acha que Tim Maia estava certoquando escreveu... "não quero dinheiro,eu quero amor sincero, é isso que eu espero...".Um idealista...Um verdadeiro sonhador...Rifa-se um coração que nunca aprende.Que não endurece,e mantém sempre viva a esperança de ser feliz,sendo simples e natural.Um coração insensato que comanda o racionalsendo louco o suficiente para se apaixonar.Um furioso suicida que vive procurando relaçõese emoções verdadeiras.Rifa-se um coração que insisteem cometer sempre os mesmos erros.Esse coração que erra, briga, se expõe.Perde o juízo por completo em nome de causas e paixões.Sai do sério e, às vezes revê suas posiçõesarrependido de palavras e gestos.Este coração tantas vezes incompreendido.Tantas vezes provocado. Tantas vezes impulsivo.Rifa-se este desequilibrado emocional que,abre sorrisos tão largos que quase dá pra engolir as orelhas,mas que também arranca lágrimas e faz murchar o rosto.Um coração para ser alugado,ou mesmo utilizado por quem gosta de emoções fortes.Um órgão abestadoindicado apenas para quem quer viver intensamente e,contra indicado para os que apenas pretendem passar pela vidamatando o tempo, defendendo-se das emoções.Rifa-se um coração tão inocenteque se mostra sem armaduras e deixa louco o seu usuário.Um coração que quando parar de baterouvirá o seu usuário dizer para São Pedro na hora da prestação de contas:" O Senhor poder conferir", eu fiz tudo certo,só errei quando coloquei sentimento.Só fiz bobagens e me dei malquando ouvi este louco coração de criançaque insiste em não endurecer e, se recusa a envelhecer".Rifa-se um coração, ou mesmo troca-se por outroque tenha um pouco mais de juízo.Um órgão mais fiel ao seu usuário.Um amigo do peito que não maltrate tanto o ser que o abriga.Um coração que não seja tão inconseqüente.Rifa-se um coração cego, surdo e mudo,mas que incomoda um bocado.Um verdadeiro caçador de aventuras que,ainda não foi adotado, provavelmente,por se recusar a cultivar ares selvagens ou racionais,por não querer perder o estilo.Oferece-se um coração vadio, sem raça, sem pedigree.Um simples coração humano.Um impulsivo membro de comportamento até meio ultrapassado.Um modelo cheio de defeitos que,mesmo estando fora do mercado,faz questão de não se modernizar, mas vez por outra,constrange o corpo que o domina.Um velho coração que convence seu usuárioa publicar seus segredos e, a ter a petulânciade se aventurar como poeta.

sexta-feira, 7 de março de 2008

Inconstância. (Florbela Espanca)

Procurei o amor, que me mentiu.
Pedi à Vida mais do que ela dava;
Eterna sonhadora edificava
Meu castelo de luz que me caiu!
Tanto clarão nas trevas refulgiu,
E tanto beijo a boca me queimava!
E era o sol que os longes deslumbrava
Igual a tanto sol que me fugiu!
Passei a vida a amar e a esquecer...
Atrás do sol dum dia outro a aquecer
As brumas dos atalhos por onde ando...
E este amor que assim me vai fugindo
É igual a outro amor que vai surgindo,
Que há-de partir também... nem eu sei quando...